Por um lado, especialistas veem segurança jurídica; de outro, setor critica burocracia e teme impacto econômico com nova norma trabalhista
As regras para o trabalho aos domingos e feriados no comércio
vão mudar. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) restabeleceu, por meio da
Portaria nº 3.665/2023, a exigência de negociação coletiva para que empresas
possam funcionar nesses dias.
A norma, que entraria em vigor neste mês, foi adiada para
março de 2026 e revoga autorizações administrativas que permitiam o
funcionamento com base apenas na decisão do empregador. Enquanto o
governo defende que a medida corrige distorções e fortalece o equilíbrio entre
patrões e empregados, o setor produtivo alerta para riscos à
geração de empregos e à sobrevivência de micro e pequenas empresas.
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A portaria em questão alterou uma anterior, publicada durante
o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro(PL), que prevê uma autorização
para trabalho aos domingos e feriados. Essas permissões podem ser de natureza
transitória ou permanente.
A de caráter transitório pode ser concedida em situações
específicas. Já a autorização permanente é concedida em caráter contínuo
para determinadas atividades, classificadas por setores:
- Indústria
- Comércio
- Transportes
- Comunicações
e Publicidade
- Educação
e Cultura
- Serviços
Funerários
- Agricultura
- Pecuária
e Mineração
- Saúde
e Serviços Sociais
- Atividades
Financeiras e Serviços Relacionados
Assim, a norma que ainda está em vigor estabelece as
condições e os procedimentos para que as empresas possam operar legalmente aos
domingos e feriados. Ela garante que, mesmo nesses regimes especiais, os
direitos dos trabalhadores a descanso sejam salvaguardados através de regras
claras de revezamento. Por outro lado, as autorizações concedidas são de
caráter administrativo, ou seja, sem a necessidade de acordo com os sindicatos.
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Opiniões divididas
De acordo com o governo, essa regra viola o que estabelece a
Lei 10.101/2000, alterada pela Lei 11.603/2007, que determina o funcionamento
de estabelecimentos comerciais em feriados apenas se houver previsão em
convenção coletiva entre empregadores e trabalhadores, além do respeito à
legislação municipal.
Diante disso, com a nova portaria, o Governo Federal afirma
que busca corrigir essa distorção e reforçar a importância da negociação
coletiva como instrumento legítimo de mediação entre patrões e empregados. Ao
exigir que o trabalho em feriados seja pactuado via convenção, o Ministério
do Trabalho reafirma a centralidade do diálogo social e do papel dos
sindicatos na regulação das condições laborais.
Por outro lado, a medida vem sendo alvo de críticas por parte
do setor de comércio e serviços. Para a Confederação das Associações Comerciais
e Empresariais do Brasil (CACB), a portaria do MTE cria burocracia
desnecessária em um cenário de relações trabalhistas já maduras e um mundo
digital que funciona todos os dias e horários, sem descanso.
"Restringir o funcionamento do comércio aos domingos e
feriados é prejudicar a geração de empregos. Alegações como trabalho análogo à
escravidão ou outras situações já foram superadas. Aquele momento de criar leis
exclusivamente para proteger uma classe trabalhadora já passou. Hoje, as
relações de trabalho são muito mais baseadas no diálogo, na diplomacia, no bate-papo
entre patrão e empregado” , defendeu Valmir Rodrigues, vice-presidente financeiro da CACB e
presidente da Federação das Associações Comerciais e Empresariais do Estado
de Minas Gerais( FederaMinas).
Entenda a nova portaria
Publicada em novembro de 2023, a Portaria 3.665/2023 alterou
dispositivos da regulamentação trabalhista em vigor, especialmente no que diz
respeito ao funcionamento do comércio em feriados, à prorrogação de jornada em
ambientes insalubres e ao registro de ponto dos trabalhadores. A medida revogou
autorizações automáticas previstas na Portaria nº 671/2021 e passou a exigir
maior rigor formal, sobretudo com relação à negociação coletiva.
Um dos principais efeitos da nova portaria recai sobre o
comércio em geral. Até então, muitos estabelecimentos estavam autorizados a
funcionar em feriados com base em permissões gerais. Com as regras que devem
entrar em vigor a partir de 2026, o trabalho em feriados passa a depender,
obrigatoriamente, de convenção coletiva e da legislação municipal. Ou seja, as
empresas só poderão abrir nesses dias caso haja acordo expresso entre os
sindicatos dos trabalhadores e dos empregadores, além de respaldo legal
local.
A regra abrange o “comércio em geral” e o “comércio varejista
em geral”, com exceção de supermercados e hipermercados cuja
atividade principal seja a venda de alimentos, cujo funcionamento continua
permitido mesmo nos feriados.
“As normas coletivas são utilizadas para equilibrar as
negociações entre empregados e empregadores, justamente porque os trabalhadores
são considerados a parte mais vulnerável nessa relação” , destacou Rodrigo Marques,
Gestor da Área Trabalhista do PG Advogados. “Com a negociação
coletiva, será possível garantir segurança jurídica para as partes, assegurando
o registro de direitos como pagamento de horas extras, escalas de trabalho e
compensações previstas em documento formal” , avaliou.
A regra se apoia no artigo 611-A da Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT), que prevê a prevalência do negociado sobre o
legislado em temas como jornada, banco de horas e remuneração por
produtividade. Nesse contexto, a convenção coletiva passa a funcionar como um
instrumento preventivo de conflitos judiciais. “Com regras previamente
estabelecidas entre as partes, há redução de disputas trabalhistas, maior
clareza contratual e garantia de que os direitos serão respeitados” ,
esclareceu Marques.
Para o setor patronal, o desafio será se adaptar à nova
dinâmica sem comprometer a competitividade e construir acordos em tempo hábil
para garantir o funcionamento do comércio em datas estratégicas. Já para os
trabalhadores, as mudanças significam uma proteção formal maior, com respaldo
jurídico em caso de descumprimento.
Portaria sobrepõe legislações municipais
Mesmo que a portaria estabeleça que a legislação municipal
deve ser observada em relação ao trabalho aos domingos e feriados, os
trabalhadores só poderão ser convocados para o expediente se houver uma
convenção ou acordo coletivo vigente.
“A legislação municipal pode autorizar a abertura do
comércio, mas as condições de trabalho e a permissão para que os empregados
trabalhem nesses dias são reguladas pela legislação trabalhista federal, que
agora exige a negociação coletiva” , explicou Fernanda Maria Rossignolli, sócia da HRSA
Sociedade de Advogados e especialista em relações de trabalho.
Isso significa que, se não houver convenção coletiva firmada
até março de 2026, o trabalhador poderá se recusar a cumprir jornada em feriado
mesmo que receba a ordem do empregador. “O empregado tem o direito de
recusar o trabalho em feriados se não houver previsão legal ou contratual para
isso” , reforçou Rossignolli.
A advogada orienta que os empregados fiquem atentos aos
comunicados da empresa e consultem, sempre que possível, a Convenção
Coletiva de Trabalho(CCT) ou o Acordo Coletivo de Trabalho(ACT)
da sua categoria. “Se a empresa comunicar o trabalho em feriado, o
trabalhador pode — e deve — questionar a base legal dessa exigência” ,
pontuou a especialista.
Se houver descumprimento da norma, o trabalhador tem várias
opções. Pode acionar o sindicato, fazer denúncia ao MTE ou buscar reparação
na Justiça do Trabalho. “Em último caso, o empregado poderá
ingressar com ação pleiteando o pagamento em dobro do feriado trabalhado, além
de outras reparações cabíveis” , esclareceu Rossignolli.
A nova regra vale igualmente para contratos temporários,
intermitentes e terceirizados. Não há exceções. Assim, a recomendação é que o
trabalhador não assine acordos individuais de compensação de jornada sem antes
consultar o sindicato ou um advogado. “A CCT/ACT pode estabelecer
limites ou condições específicas. Assinar sem respaldo é um risco” ,
alertou a especialista.
O papel dos sindicatos
Com a entrada em vigor da portaria, em março de 2026, os
sindicatos ganharam um papel estratégico na proteção dos direitos
trabalhistas.
Para Rodrigo Marques, os Sindicatos deverão buscar,
inicialmente, uma análise prévia de todas as Negociações Coletivas em vigor
para que “seja verificado se há cláusulas referentes ao labor em
feriado, constando direitos e obrigações das partes envolvidas” . Já
para Fernanda Rossignolli, o primeiro passo para uma negociação eficaz é a
escuta ativa da base.
“É fundamental que o sindicato entenda as condições e a
frequência em que os empregados que representa trabalham em feriados” , afirmou.
Embora a exigência de convenção coletiva traga maior
segurança jurídica, Rossignolli recomenda que os sindicatos adotem medidas de
proteção, como manter a coesão interna, dar transparência ao processo de
negociação e resistir a cláusulas que representam retrocessos. “Não se
pode ceder à pressão econômica quando ela ameaça precarizar as condições de
trabalho” , pontuou.
A especialista também sugere que, diante de impasses, os
sindicatos busquem apoio de instâncias como o Ministério Público do
Trabalho. “A mediação institucional é uma ferramenta legítima para
garantir acordos mais equilibrados, especialmente quando há desequilíbrio de
forças entre as partes” , concluiu.
Nesse novo cenário, a atuação sindical deixa de ser apenas
uma formalidade e se consolida como elemento central para garantir que a
regulamentação do trabalho em feriados atenda aos interesses das classes
envolvidas.
Com a prorrogação, empresas ganharam tempo
Com a prorrogação da Portaria nº 3.665/2023 para março de
2026, as empresas ganharam tempo, mas também a responsabilidade de se preparar
para um novo cenário nas relações de trabalho.
“Os empregadores precisarão verificar se as normas coletivas
que regem seus funcionários já preveem o trabalho em feriados e as obrigações
das partes — como escalas, compensações e pagamentos adicionais” , explicou o gestor trabalhista
da PG Advogados. Caso não haja previsão expressa, será necessário negociar
diretamente com os sindicatos, formalizando novos acordos.
“As empresas devem entender a prorrogação como um prazo a
mais para se antecipar às regularizações devidas, evitando inclusive perdas
financeiras” ,
alertou o especialista. O não cumprimento das novas exigências poderá gerar
consequências graves para o empresariado. “Há riscos de autuações
imediatas e de aumento do passivo trabalhista, já que as empresas poderão ser
fiscalizadas tanto pelo MTE quanto pelo Ministério Público do Trabalho” ,
explicou Marques.
As penalidades incluem autos de infração, multas, assinatura
de Termo de Ajuste de Conduta (TAC) e até ações judiciais por parte dos
trabalhadores.
O impacto financeiro também é um ponto de atenção. “Essas
contraprestações podem incluir adicionais de horas extras, folgas
compensatórias, banco de horas ou até benefícios específicos, o que pode
aumentar os custos da folha de pagamento” , advertiu Marques. A regra
vale para todos, mas empresas de pequeno porte podem enfrentar maiores
dificuldades.
Segundo Fernanda, “os pequenos empresários podem ter
mais dificuldade em negociar, seja por falta de estrutura, seja por se sentirem
mais vulneráveis frente aos sindicatos” . O impacto financeiro também
pode ser mais pesado para os pequenos negócios, que já operavam em feriados sem
pagamento em dobro ou folgas compensatórias.
Ainda assim, a negociação coletiva será feita entre
sindicatos patronais e laborais, o que, segundo o advogado, nivela as
condições. “Pequenos empresários também devem buscar apoio jurídico e
participar ativamente das negociações para evitar futuros passivos
trabalhistas” , orientou.
Impacto para o setor
A decisão do MTE de restabelecer a obrigatoriedade de
convenção coletiva tem gerado forte reação do setor empresarial. Para a
Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Distrito Federal ( Fecomércio-DF),
a medida impõe entraves burocráticos e ameaça a liberdade econômica das
empresas, especialmente das micro e pequenas.
“A exigência de convenção coletiva representa um retrocesso
nas relações laborais e na dinâmica do setor produtivo” , afirmou Silvio Lucio Junior,
assessor jurídico da Fecomércio-DF. “Ela ignora a realidade de diversos
segmentos do comércio que já mantinham relações laborais equilibradas e
ajustadas por meio de acordos bilaterais com seus empregados” ,
completou.
Segundo Lucio Junior, a exigência de convenções coletivas
gera “insegurança jurídica”, uma vez que muitos setores não contam com acordos
atualizados prevendo expressamente o trabalho em feriados. “O principal
efeito é a insegurança. Sem convenção vigente, os empresários ficam expostos a
autuações e passivos trabalhistas” , alertou. “A negociação de
convenções específicas demanda tempo, estrutura e custos — recursos que muitos
não têm” , acrescentou.
Valmir Rodrigues, vice-presidente financeiro da CACB e
presidente da FederaMinas, compartilha da mesma visão. Para ele, a portaria
ignora as particularidades das micro e pequenas empresas, que representam a
maior parte do comércio nacional e nem sempre têm uma estrutura sindical
organizada capaz de acompanhar a dinâmica das negociações coletivas. “Quando
a gente chega no ambiente das micros e pequenas empresas, isso não é tão
organizado. E serão as mais prejudicadas” , alertou.
Embora reconheça que a medida valoriza a negociação coletiva,
o representante da Fecomércio-DF ressaltou que a regra, se aplicada de forma
inflexível, pode prejudicar tanto empresários quanto trabalhadores. “Há
um risco real de prejuízos operacionais em datas estratégicas para o comércio,
como feriados prolongados e datas comemorativas” , observou. “Isso
pode afetar a receita das empresas, desestimular a atividade empresarial e,
consequentemente, impactar o emprego” , advertiu.
Nesse sentido, para Valmir Rodrigues, a portaria ignora
avanços recentes como a aprovação tácita prevista na Lei de Liberdade
Econômica. “Quando você traz uma portaria como essa, no nosso
entendimento, está retrocedendo e deixando de confiar no empresário que gera
emprego em um país tão sofrido como o nosso” , afirmou.
O empresário destacou que, ao impor restrições ao trabalho em
domingos e feriados, a norma acaba penalizando o comércio físico, enquanto o
e-commerce opera livremente, 24 horas por dia, com menos colaboradores.
Outro ponto de crítica diz respeito à criação de mais
exigências burocráticas que, na prática, não resultam em maior proteção para os
trabalhadores. “Não é o fato de você ter que colocar na convenção
coletiva que vai fazer a coisa funcionar sob o viés de proteção do colaborador.
O que nós entendemos é que precisamos trabalhar fortemente com os empregadores
para que eles sejam respeitadores da lei — e é o que nós fazemos” ,
disse.
O presidente da FederaMinas também alertou para o risco de
retração da atividade empreendedora diante do excesso de regras. “Se eu
começo a desestimular os pequenos empresários, eles vão começar a se perguntar:
vale a pena manter a empresa aberta ou é melhor migrar para o e-commerce, gerar
menos empregos e investir no mercado financeiro?” , questionou.
Entidades atuam para derrubar exigências
Diante dos riscos à geração de empregos e dos impactos para o
setor, entidades ligadas ao comércio e serviços estão atuando para impedir que
a portaria entre em vigor em março do próximo ano. Rodrigues destacou que
a Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil (CACB)
e a FederaMinas estão atuando em duas frentes para tentar reverter os efeitos
da medida.
“Nós estamos trabalhando em uma frente que observa a
movimentação dos pequenos empresários diante dessa obrigatoriedade e, ao mesmo
tempo, em uma linha muito forte de diálogo com o Governo Federal para que essa
portaria seja extinta antes mesmo de entrar em vigor” , afirmou o vice-presidente
financeiro da CACB e presidente da Federaminas.
A CACB já participou de reuniões com o Ministério do Trabalho
e acredita que há abertura para discutir o tema. “Pelas reuniões que
fizemos em Brasília, com o próprio ministério, a gente acredita que sim, há
chances de conseguir essa missão [extinguir a portaria]” , avaliou
Rodrigues.
Já a Fecomércio-DF destacou que a percepção dos empresários,
no entanto, ainda é de cautela. “Há preocupação com o aumento da
burocracia e o impacto sobre a competitividade. Muitos sentem que a nova regra
restringe a autonomia negocial” , explicou Silvio Lucio Junior,
assessor jurídico da entidade. Parte do empresariado, contudo, vê com bons
olhos a possibilidade de acordos coletivos que tragam segurança jurídica e
previsibilidade.
Assim, caso a medida realmente entre em vigor, a Federação
pretende atuar de maneira colaborativa no processo de adequação. “Vamos
ampliar o diálogo com os sindicatos laborais, orientar os empresários e
acompanhar projetos de lei no Congresso que possam reequilibrar a legislação” ,
afirmou Junior. A entidade também aposta no fortalecimento da
representatividade patronal para garantir que as negociações avancem com
agilidade e equilíbrio.
A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e
Turismo ( CNC) também tem atuado para estabelecer um diálogo com o
Governo Federal, em busca de uma resolução que atenda aos interesses do setor e
garanta a proteção dos direitos trabalhistas. Durante a 113ª Conferência
Internacional do Trabalho (CIT) da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
que ocorreu de 2 a 13 de junho deste ano, em Genebra, representantes da
entidade conversaram com o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho,
sobre a portaria.
Na oportunidade, a CNC expôs suas considerações sobre o tema,
recebendo como retorno do ministro a promessa de agenda para tratar do assunto
com a representação dos trabalhadores do setor. “Comprometida com o
diálogo, a Confederação entende a necessidade de promover o debate na
negociação entre os atores sociais envolvidos na busca por um consenso que seja
benéfico para a segurança jurídica das empresas e para a sociedade” ,
declarou a entidade, em nota enviada ao Portal iG.
