Uma filha ganhou na justiça o direito de manter o corpo do
falecido pai em estado de criogenia — prática conhecida por congelar órgãos,
geralmente por quem acredita na eventual descoberta da ressurreição pela
ciência moderna —, conforme decisão da terceira turma do Superior Tribunal de
Justiça (STJ).
Segundo a decisão, Lígia Monteiro poderá continuar a usar uma
empresa em Michigan, nos EUA, que oferece esse tipo de serviço, para preservar
o corpo do pai, o engenheiro Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro, falecido em
2012. Na ocasião da morte, pai e filha moravam juntos no Rio de Janeiro.
A chegada do caso ao STJ se deu por uma briga judicial
familiar: após a morte do pai, Lígia ordenou que a empresa de Michigan
retirasse o corpo do hospital e o preservasse em suas instalações nos EUA. Duas
outras filhas do falecido, porém, alegaram não terem sido informadas do
procedimento e acionaram a justiça contra a irmã a fim de assegurar “um
sepultamento digno” para o pai no Brasil.
Tudo começou com um processo judicial comum na Justiça do Rio
de Janeiro, onde a primeira turma deu razão às duas irmãs, ordenando o
sepultamento. Após recurso junto ao Tribunal de Justiça, Lígia conseguiu a
ordem de congelamento, apenas para que um pedido revisional das irmãs mudasse o
veredito, mais uma vez decidindo em favor do sepultamento do falecido. Lígia,
então, levou o processo à instância mais alta, na terceira turma do STJ, que
entendeu como comprovada a vontade do pai de ser congelado. Ela argumentou que
as irmãs mal mantinham contato com Luiz Felippe e, consequentemente,
desconheciam suas vontades.
O ministro Marco Aurélio Belizze, que justificou seu voto
nesta terça-feira, 26, disse que Lígia se comprometeu a arcar com todos os
custos de envio do corpo para Michigan, além do uso dos serviços da empresa
contratada (US$ 28 mil). Ela também será responsável por arcar com as visitas
das irmãs ao corpo, nos Estados Unidos. Segundo o magistrado, o caso não envolvia
a eficácia da criogenia em si, mas a vontade do falecido.
“Dessa forma, não obstante o ineditismo da matéria discutida,
a questão que se coloca é eminentemente jurídica e sob essa perspectiva,
apenas, deve ser analisada. Descabe, portanto, qualquer juízo moral e religioso
sobre a suposta opção do falecido e seus resultados científicos, bem como
qualquer tentativa de regulação da matéria, cuja competência é do Poder
Legislativo”, ele destacou.
Mitos sobre a criogenia
A ideia de “congelar um corpo para reanimá-lo no futuro” não
é exatamente nova e boa parte da população tem um entendimento mínimo de como
ela funciona: você tem um parente falecido (ou você próprio tem esse desejo e
se planeja para antecipar a própria morte), contrata os serviços de uma empresa
que atua em criogenia, paga os (altos) valores pedidos e, enfim, tem um corpo
congelado. A ideia é a de que o congelamento “preserve” o corpo falecido para
quando a ciência moderna atingir a capacidade de ressurreição daqueles que já
se foram.
O mito mais comum sobre o assunto é o de que Walt Disney
teria congelado seu próprio corpo (ou seu cérebro, ou partes do seu corpo —
essa história muda dependendo da fonte) com o objetivo de voltar à vida no
futuro. Isso, claro, já foi desmentido: o criador do que é hoje a maior empresa
de entretenimento do mundo foi cremado e suas cinzas estão armazenadas no
cemitério de Forest Lawn, em Glendale, na Califórnia. Mas a história já havia
viralizado, popularizando a prática. Aproveitando o ensejo, as notícias de que
o empresário musical Simon Cowell e a herdeira do ramo da hotelaria e socialite
Paris Hilton já contrataram serviços assim são boatos desmentidos também.
No mundo, porém, há aproximadamente 200 pessoas de fato
congeladas para essa finalidade, segundo o Cryonics Fact Sheet. Empresas do
setor, como a Alcor (a maior delas), costumam inflar esses números, dizendo que
possuem mil membros, mas o que elas não costumam divulgar é que a maior parte
destes membros ainda está viva, apenas contratando os serviços.
A ciência por trás da criogenia, porém, possui méritos: há
casos registrados de organismos pouco evoluídos, vírus e outras vertentes sendo
reativados após “morrerem” congelados. Extrapolar essa prática para a raça
humana é que é, hoje, impossível.
“Eu diria que, na tecnologia de hoje, a criogenia causa danos
severos às células do corpo. Mesmo nas melhores condições (o procedimento
ocorre logo após a morte, por exemplo), há diversos problemas com isso.
Particularmente, agentes criogênicos trazem efeitos tóxicos aos tecidos humanos
por meio de exposição prolongada. ‘Vitrificar’ órgãos grandes, como o cérebro,
também pode resultar em microfraturas devido às diferentes temperaturas de
congelamento nas diferentes partes do corpo”, disse ao Gizmodo o Dr. Joao Pedro
de Magalhães, biólogo da Universidade de Liverpool e coordenador da Rede
Britânica de Pesquisa em Criopreservação.
E isso é o melhor cenário: no caso da demora entre a morte e
o congelamento, o doutor ainda pontua o fato de que células por todo o corpo
começam a morrer também — em especial, células cerebrais, que são induzidas à
isquemia minutos após o falecimento do indivíduo (isso é causado pela falta de
nutrientes e oxigênio entrando e saindo do cérebro). Assim sendo, não seria
apenas o caso de “congelar e descongelar”, mas também o de criar tecnologias
regenerativas suficientemente avançadas para repor células importantes
perdidas.
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