Adriana Queiroz pagou parte
dos seus estudos como limpadora de um hospital e escreveu um livro
A luz do quarto de Adriana
Queiroz estava sempre acessa nas madrugadas. Ela trabalhava durante o dia,
estudava às noites e rezava para que quem apenas a via como uma mulher negra,
pobre e filha de analfabetos não quebrasse seu sonho. Adriana não queria ser o
que os outros esperavam dela, ela queria ser juíza em um país onde a taxa de
analfabetismo das mulheres negras (14%) mais que duplica a das brancas (5,8%),
segundo o IBGE.
Adriana, com 38 anos, é hoje
titular da 1ª Vara Cível e da Vara de Infância e da Juventude de Quirinópolis,
em Goiás. Tem cinco pós-graduações, estuda Letras nas horas vagas, mas já foi
faxineira. Ela teve que se esforçar muito mais que a maioria dos seus colegas
de aula para vestir a toga. E conseguiu. Hoje conta suas conquistas em um livro
que acabou de lançar, Dez passos para alcançar seus sonhos – A história real da
ex-faxineira que se tornou juíza de direito.
Os pais de Adriana eram
trabalhadores rurais no sertão da Bahia e se mudaram para Tupã, um município de
63.000 habitantes no interior de São Paulo, em busca de uma vida melhor. O
orçamento familiar aumentou, o pai virou motorista de ônibus e a mãe vendedora
ambulante, mas pagar uma faculdade era ainda um sonho de outra classe social.
“A vida deles sempre foi muita dura. Meus pais sofreram muito, eles queriam me
dar o que eles não alcançaram, mas não tinham condições. Ninguém na minha
família tinha condições de me ajudar”, lembra a juíza em uma conversa por
Skype.
A magistrada, que sempre
estudou em escola pública, foi a terceira classificada no vestibular para
cursar direito, mas a única faculdade de sua cidade era privada. Não tinha como
pagar, muito menos como cogitar uma universidade pública em outra cidade. “Eu
soube do resultado da prova numa sexta e, na segunda, já tinha que fazer a
matricula ou perdia a vaga. Tive três dias para decidir o que fazer, ver se
teria que abandonar”.
Ela resolveu, em seguida,
pedir conselho e emprego a um professor da cidade. Ele, que trabalhava no corpo
administrativo da Santa Casa, conseguiu uma vaga para ela na instituição. De
faxineira. Adriana se orgulha daqueles seis meses que limpou o hospital, mas o
salário mínimo que recebia não era suficiente para pagar a mensalidade da
universidade e ainda ouvia chacota dos colegas. “Força nos braços,
advogadinha!”, lhe gritavam. “Esse episódio é muito marcante para mim,
justamente por esse preconceito de que alguém que exerce um cargo como eu
exercia não possa sonhar alto”.
Faltavam horas para o prazo
da matrícula expirar quando Adriana plantou-se na frente do diretor da
faculdade. Compartilhou seu sonho de estudar. “Ele se sensibilizou e me
concedeu uma bolsa de 50% e diluiu o valor da matrícula nas mensalidades. Assim,
durante o dia trabalhava na limpeza e à noite ia estudar”.
Para espanto dos seus
conhecidos e familiares, durante a faculdade, Adriana resolveu ser juíza.
“Quando anunciei isso as pessoas ficaram espantadas. Não era comum no meu
contexto almejar um cargo tão alto. É como se fosse algo inacreditável, faziam
questão de frisar que eu era pobre e negra, como se não tivesse nenhuma
chance”, lamenta. Decidida, em 2002, terminou os estudos, pediu demissão na
Santa Casa, onde já tinha sido promovida ao corpo administrativo e guardou suas
coisas em duas sacolas plásticas. Partia para a capital para se preparar. “Eu
não tinha nem mala”, relata.
Após alugar um quartinho no
bairro da Liberdade e se matricular no curso preparatório para o concurso da
magistratura o dinheiro da conta dava para, no máximo, mais dois meses. “Foi um
momento muito crítico, o dinheiro estava acabando e eu não tinha conseguido
trabalho”, conta Adriana. “Eu me vi de novo nesse dilema de ter ou não que
abandonar”. Não precisou. O diretor do curso, o procurador Damásio de Jesus,
viu nela uma “pessoa incomum”.
“Logo à primeira vista,
olhando nos olhos daquela jovem advogada de 24 anos, tive certeza de que estava
diante uma lutadora, uma pessoa incomum, de alguém que, sem dúvida, estava
fadada a um grande futuro”, destaca o jurista no prefácio do livro. Damásio
ofereceu para ela uma bolsa de 100% do curso durante dois anos e a empregou na
biblioteca da instituição. “Fiquei sete anos estudando, sábados, domingos e
feriados. Quando as pessoas iam viajar, eu ficava na biblioteca. Depois de
inúmeras reprovações, eu consegui. Em janeiro de 2011 passei o concurso e me
tornei juíza em Goiânia”.
Caçula de seis irmãos, a
única deles que tem ensino superior, Adriana quer motivar agora com o livro a
todas as pessoas que, assim como ela, "sonham, mas estão desacreditadas”.
“É possível romper os paradigmas sociais”, encoraja. “Eu, particularmente, não
sofro racismo hoje. Mas sim vivencio a grande surpresa das pessoas quando me
veem. Porque quando o advogado vai procurar o juiz, ele não espera encontrar
alguém como eu. Eu não me importo. Eu fico feliz de ter quebrado esse
paradigma”.
Fonte: EL País
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