Sonolência, falta de fome ou de sede, pele seca e azulada, respiração barulhenta... A chegada da morte pode ser marcada por uma série de sinais — e saber identificá-los é uma das chaves para um fim mais suave e tranquilo.
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| A chamada fase ativa da morte indica o momento em que não há mais tratamento ou intervenção capaz de postergar o fim da vida — Foto: Getty Images via BBC |
Sonolência, falta de fome ou de sede, pele seca e azulada,
respiração barulhenta... A chegada da morte pode ser marcada por uma série de
sinais — e saber identificá-los é uma das chaves para um fim mais suave e
tranquilo.
Se a morte é a única certeza que temos na vida, chama a
atenção uma generalizada falta de conhecimento sobre o que realmente acontece
quando o fim está próximo.
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Especialistas em cuidados paliativos ouvidos pela BBC News
Brasil dizem que até mesmo médicos e outros profissionais de saúde muitas vezes
não sabem como agir nesse momento e apelam a procedimentos que são supérfluos,
que mais atrapalham que ajudam.
O processo conhecido como fase ativa da morte acontece
durante os últimos dias, ou as últimas horas, de uma pessoa.
Obviamente, ele não é igual para todo mundo — e está
geralmente relacionado às enfermidades de longo prazo, como o câncer e a
demência, em que a pessoa passa meses, ou até anos, fazendo tratamentos, até
chegar ao ponto em que os órgãos e sistemas que constituem o organismo não são
mais capazes de manter a vida adiante.
Entenda a seguir quais são as manifestações mais comuns de
uma morte iminente, por que elas acontecem e o que pode ser feito para que esse
evento seja suave, com poucos incômodos e significativo para que vai (e também
para quem fica).
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O desligar da terra
A médica Ana Claudia Quintana Arantes, referência nos estudos
sobre o envelhecimento, os cuidados paliativos e a morte no Brasil, faz uma
analogia didática, quase poética, entre os estágios finais da vida e os quatro elementos
clássicos da natureza: terra, água, fogo e ar.
Seguindo a linha de raciocínio dela, a primeira etapa da
morte ativa é simbolizada pela terra, uma representação do material, do físico,
daquilo que a gente toca e pisa.
"A terra é o primeiro elemento que vai embora. Dá um
cansaço estranho, que pesa nos olhos", diz a especialista, autora do
livro A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver (Editora
Sextante).
"Há também um peso no corpo. Por mais magrinho que
esteja, você não consegue movimentar um braço, não consegue se virar na cama.
Você precisa de ajuda, e quando essa ajuda vem, ela percebe que esse corpo,
mesmo que frágil, mesmo que pequenino, pesa muito, pesa tanto quanto o
mundo", complementa Arantes, que também atua no Hospital Israelita Albert
Einstein, em São Paulo.
É comum então que a pessoa fique mais reclusa, sonolenta e
entre num estado de inconsciência por alguns momentos.
Aqui, o corpo dela está começando a se desligar aos poucos,
então alguns órgãos ou sistemas funcionam mais devagar e deixam de ser
relevantes.
O médico Arthur Fernandes, secretário-geral da Academia
Nacional de Cuidados Paliativos, compara esse momento ao apagar das luzes de um
prédio, ou ao desligamento das máquinas que compõem uma fábrica.
Uma das primeiras partes do corpo a entrar nessa marcha lenta
é o sistema digestivo.
A pessoa que entrou na fase ativa da morte tem naturalmente
menos necessidade de comer ou beber água. E ela não sente mais fome ou sede
como antes.
Com isso, a necessidade de ir ao banheiro também diminui aos
poucos.
Outro sinal típico nesse momento é a alteração da pele, que
se torna cada vez mais pálida e gelada, além de sofrer eventuais inchaços.
A pele também pode ganhar um tom azulado ou arroxeado,
principalmente nas extremidades, como mãos e pés, além dos lábios. Isso é
normal e indica que a circulação sanguínea também entrou num ritmo mais lento.
Mesmo que a pessoa esteja sonolenta, os médicos encorajam que
familiares e amigos tenham momentos para conversar e tocar suavemente nas mãos
e nos braços do ente querido.
Estudos indicam que sentidos como a audição e o tato
continuam ativos, e esse contato pode representar uma fonte de conforto.
Tocar suavemente a pele da pessoa querida e conversar calmamente com ela é uma das formas de trazer bem-estar, indicam especialistas — Foto: Getty Images via BBC
A água que se esvai
Seguindo a linha de raciocínio de Arantes, a segunda onda de
transformações que acontece no corpo está relacionada à água.
"O corpo resseca, então os olhos, os lábios e a boca
ficam secos. A saliva, escassa", lista a médica.
Segundo a especialista, na maioria das vezes não há
necessidade de aplicar soro na veia para reidratar o corpo.
Mas é possível aumentar o conforto e o bem-estar da pessoa
prestes a partir com algumas medidas básicas, como molhar os lábios com algodão
ou pano umedecido, aplicar colírio nos olhos e passar hidratantes na pele.
É importante que esses cuidados sejam sempre discutidos com
os profissionais da saúde, para que todos estejam a par do que está sendo
feito.
Outra preocupação comum durante a morte ativa tem a ver com a
dor. Será que morrer dói?
Os especialistas dizem que, sim, algumas pessoas têm uma
piora nos incômodos físicos, e alguns dos remédios usados deixam de funcionar
como antes.
"Nas últimas horas de vida, essa dor pode descompensar e
o paciente fica agitado. Além do desconforto, também pode acontecer falta de
ar, enjoo, vômitos...", responde Fernandes.
Mas os profissionais de saúde podem prescrever medicamentos
mais fortes, como a morfina, que dão alívio.
Ou seja, a dor é uma possibilidade no fim. Mas a medicina tem
caminhos para lidar com ela.
"Tanto os profissionais da saúde quanto a família precisam saber dessas possibilidades e deixar tudo organizado, como ter por perto as doses de medicações e saber as melhores formas de aplicá-las, para evitar sintomas muito desagradáveis", complementa o médico.
A melhora da morte
Há também uma etapa da morte ativa que pode ser simbolizada
pelo fogo.
Esse é o momento em que a chama da vida ganha o seu último
fôlego.
Trata-se de um período comumente chamado de "melhora da
morte" ou "a visita da saúde".
Aqui, os sintomas que a pessoa estava sentindo costumam
melhorar, para a surpresa de quem acompanha a situação.
Ela sai daquele estado de letargia e inconsciência, volta a
se comunicar, quer comer e parece mais animada, como se o quadro tivesse
melhorado de forma repentina.
Mas Fernandes pondera que essa mudança não é uma coisa da
água pro vinho: um paciente acamado por muito tempo não vai andar de novo, por
exemplo.
Mas a volta de uma chama um pouco mais forte pode representar
uma oportunidade única.
"O paciente que comia muito pouco pode agora comer mais.
Ele pode experimentar uma comida que gosta muito, pra sentir o sabor. Ele sai
daquela sonolência para rever uma pessoa querida", destaca o especialista.
"Esse pode ser o momento em que ele consegue se
despedir, dizer que ama, receber perdão e pedir desculpas para alguém",
complementa ele.
Não raro, os familiares e a própria equipe de saúde querem
usar esse momento para fazer exames ou intervenções, numa tentativa de ampliar
o tempo de vida daquela pessoa.
Mas, segundo Arantes, essas medidas geralmente são supérfluas
— e ocupam o tempo valioso que seria usado para encontros e despedidas.
"Esse tempo deveria ser utilizado para exercer a
autoridade, a autonomia de deixar a sua marca, a forma de estar no mundo, para
as pessoas que você ama", aponta ela.
"Esse é o momento de fazer declaração de amor. De pedir
perdão, de perdoar. E reconhecer que nem sempre foi possível fazer o que se
queria ter feito."
"Essa é a chance expressar a sua essência, sem nenhuma
reserva", reflete ela.
A melhora da morte costuma durar pouco tempo — e logo a chama volta a ficar fraca de novo.
Se nosso primeiro ato em vida é respirar, puxar o ar, o último é expirar, ou devolver esse 'sopro sagrado', nas palavras de Arantes — Foto: Getty Images via BBC
O sopro da vida
Para fechar a lista dos elementos elaborada por Arantes,
chegou a hora de entender como o ar se encaixa nessa história.
E ele simboliza uma das alterações mais aparentes do corpo na
hora da morte.
A respiração sai do padrão que estamos acostumados. Às vezes,
ela fica rápida e curta. Depois, longa e pausada. Às vezes, até parece que a
pessoa deixou de respirar.
Outros eventos comuns nessa etapa é permanecer com a boca
aberta, pelo relaxamento dos músculos que seguram a mandíbula, e uma respiração
bem barulhenta, como se a pessoa estivesse roncando alto.
Isso acontece porque, naquele processo de desligamento das
funções vitais, o corpo acumula alguns fluidos na garganta, que geram um ruído
quando o ar passa por ali.
Esse sinal pode até ser incômodo para quem está vendo aquela
cena, mas, segundo os médicos, não representa necessariamente uma aflição para
quem está à beira da morte.
Em alguns casos, os profissionais da saúde podem indicar uma
aspiração desses fluidos ou usam remédios que melhoram esse fluxo de entrada e
saída do ar.
Arantes reflete que, quando nascemos, a primeira coisa que
fazemos é respirar, ou puxar a primeira leva de ar que enche nossos pulmões.
E um de nossos últimos atos em vida é fazer justamente o
movimento contrário: devolver o ar, numa expiração final.
"Você pode entregar esse sopro sagrado que te foi dado
quando nasceu. Se você fez bom uso desse sopro, se você teve uma vida que valeu
a pena ser vivida, essa última expiração é um presente", acredita ela.
"Daí esse fôlego cessa. E você tem um silêncio",
relata a médica.
Nos segundos depois da última expiração, o coração para de
bater. O cérebro apaga. E as células do corpo que ainda estavam ativas desligam
aos poucos.
A vida daquele indivíduo chegou ao fim.
Arantes orienta às pessoas que testemunharam esse momento que
informem os profissionais de saúde, caso eles não estejam por perto, mas não há
necessidade de fazer tudo com pressa.
"Permaneça por um momento nesse instante sagrado, que
parece até fora do tempo normal", sugere ela.
"Aquela pessoa que você ama parou de respirar, está
livre da matéria. Ela deixa de existir naquele corpo e passa a viver no coração
de todo mundo que a ama."
Já para Fernandez, a porção final da vida não deveria ser
tratada como algo tão extraordinário — e é vital que a gente fale mais sobre
isso.
"É importante que as pessoas conversem sobre esse
assunto em casa, para que a gente construa cada vez mais uma cultura que abraça
a vida sem excluir a morte", pensa ele.
"Até porque a morte não é o contrário da vida. A morte é
o antônimo de um processo que a gente chama de nascimento."
"Já a vida é tudo aquilo que está incluído dentro desse
tempo bonito que a gente tem pra viver", conclui ele.
