Em um mês sem álcool, o fígado reduz inflamação, elimina
gordura acumulada e retoma funções essenciais; médicos alertam que não há dose
segura e que o risco de dano começa no primeiro gole.
O consumo de álcool em excesso causa danos a quase todos os
órgãos do corpo, mas o fígado sofre os primeiros e maiores graus de lesão,
sempre silenciosamente. Isso porque esse é o órgão que realiza quase todo o
metabolismo do etanol.
Mas o que será que ocorre no fígado quando ficamos 24 horas,
7 dias ou 30 dias sem ingerir álcool? O g1 conversou com
médicos para responder a essas questões e também explicar como o álcool age no
fígado.
Os médicos destacam que parar de beber é sempre benéfico, até mesmo para quem chegou ao ponto de não retorno - estágio de cirrose avançada que necessita de transplante. A interrupção da ingestão de álcool, nesses casos, pode inclusive viabilizar o transplante.

Fígado abstêmio: o que acontece com seu fígado em 24h, 7 dias e 30 dias sem álcool — Foto: Adobe Stock
Mas pessoas que sofrem com transtorno por uso de
álcool – geralmente as que bebem diariamente - precisam de acompanhamento
médico para parar de beber, porque podem ter a chamada síndrome
de abstinência alcoólica, que em alguns casos pode levar a convulsões e
pode até ser fatal.
O fígado é o maior órgão interno maciço do corpo humano e um
dos mais complexos. Entenda
como ele age:
- Degrada
as substâncias tóxicas absorvidas do intestino ou produzidas em outras
áreas do corpo e excreta-as pela bile ou pelo sangue;
- Secreta
bile no intestino delgado para ajudar na digestão e absorção de gorduras;
- Armazena
vitaminas;
- Sintetiza
proteínas e colesterol;
- Metaboliza
e armazena açúcares;
- Controla
a viscosidade sanguínea;
- Regula
os mecanismos de coagulação.
Após a ingestão de álcool, o que acontece no fígado?
Grande parte do álcool ingerido (cerca de 90%) é absorvido
pelo estômago e intestinos. Depois, ele segue para o fígado pela veia
porta - um grande vaso sanguíneo - onde é metabolizado por três vias
enzimáticas: álcool-desidrogenase, citocromo P450 2E1 (CYP2E1) e catalase,
gerando acetaldeído (tóxico) e espécies reativas de oxigênio. Os metabólitos do
acetaldeído levam ao acúmulo de lipídeos, inflamação e toxicidade hepática,
explica Guilherme Grossi, hepatologista do Hospital das Clínicas da UFMG.
Depois, o acetaldeído é convertido em
acetato, que é menos nocivo e pode ser aproveitado como fonte de energia pelo
corpo. Durante esse processo, o fígado altera seu equilíbrio químico e
passa a acumular gordura dentro das células, fenômeno chamado esteatose
hepática. Em pessoas que bebem com frequência ou em grandes quantidades,
esse acúmulo pode surgir em poucos dias e, se o consumo continuar, evoluir para
inflamação, fibrose e, eventualmente, cirrose, acrescenta o hepatologista e
professor da Escola Paulista de Medicina da Unifesp Roberto José de Carvalho Filho.
Grossi destaca que seguro é não beber e, do ponto de vista
populacional, não há nível de consumo de álcool isento de risco — inclusive
para o câncer e doenças hepáticas:
“O risco começa no primeiro gole, e cresce com a dose e o
padrão de uso. Diversos fatores podem impactar o risco de lesão hepática
induzida pelo álcool, como fatores genéticos, sexo (maior risco na mulher),
comorbidades, etc. Mas o risco é maior em pacientes que já têm doença hepática
estabelecida”, explica.
24 horas sem álcool
- Em
24 horas sem álcool, começa um restabelecimento do equilíbrio químico
interno do fígado, mas esse processo de regeneração não é identificável do
ponto de vista clínico, nem por exame de sangue. As células do fígado já
entram no modo de reparo, retomando funções essenciais, como oxidar
gordura, acumular glicose, depurar outras substâncias tóxicas e eliminar
radicais livres que vêm de outras substâncias. Mas esse processo de
recuperação é silencioso e depende de como o fígado estava quando o
indivíduo decidiu parar de beber.
“A recuperação de uma pessoa que já tem cirrose após parar de
beber vai ser muito mais lenta e limitada do que a de uma pessoa que não tinha
o costume de beber de modo abusivo, mas sempre há benefícios”, explica Filho.
- Alguns
indivíduos relatam melhora subjetiva de sono e hidratação em cerca de dois
dias a uma semana, mas isso varia e não serve como marcador de recuperação
hepática por si só. As melhoras laboratoriais e estruturais costumam
demandar semanas, complementa Grossi.
Filho destaca que o fígado sofre calado e pode estar sendo
lesionado há anos sem causar sintomas perceptíveis: “Mesmo quem se sente bem
pode ter alterações silenciosas em andamento. Parar de beber, até
temporariamente, dá ao fígado a chance de interromper esse ciclo de dano
silencioso e iniciar um processo de recuperação que, quanto mais precoce, mais
eficaz será”, destaca o médico.
Além disso, a ressaca não é um ‘golpe no fígado’. Ela é muito
mais um resultado de uma intoxicação nos tecidos neurológicos do cérebro e do
estômago.
7 dias sem álcool
- As
enzimas do fígado, marcadores laboratoriais de inflamação e dano hepático,
podem levar semanas para se normalizarem. Mudanças iniciais podem ocorrer
em um período de 1 a 2 semanas.
- A
esteatose alcoólica é, em geral, reversível com abstinência sustentada. Em
uma semana de abstinência, a diferença já é significativa. Mas podem
coexistir múltiplas causas de esteatose, como a síndrome metabólica,
obesidade e diabetes, além do uso abusivo de álcool.
- Com
uma semana sem beber, o exame chamado elastografia, que mede a rigidez do
fígado, já pode identificar uma redução da inflamação e inchaço no órgão.
Mas isso depende muito do perfil do paciente – se bebia com frequência
antes de parar ou ocasionalmente.
30 dias sem álcool
- Em
um mês de abstinência, quedas significativas das enzimas do fígado são
demonstráveis, voltando a níveis normais.
- Uma
melhora na inflamação metabólica ou esteatose ocorre na maior parte dos
indivíduos.
- O
metabolismo da glicose volta ao normal.
- A
pressão arterial também volta ao normal.
- A
melhoria do padrão do sono também é clara.
- O
exame de elastografia também mostra uma melhora ainda maior.
- O
fígado já consegue eliminar o excesso de gorduras que se acumulou quando o
indivíduo bebia muito por bastante tempo, a famosa esteatose hepática.
- A
capacidade de regeneração do fígado é notável, mas tem limites. Em 30
dias, há redução do risco imediato de progressão, especialmente se havia
consumo elevado, mas o benefício maior depende da manutenção da
abstinência em longo prazo.
- Pessoas
com cirrose ou hepatite alcoólica costumam ter um risco genético, mas se
uma pessoa não tiver nenhum parente com o problema, não quer dizer que ela
esteja protegida. Quando o indivíduo para de beber, sempre há benefício,
independentemente da gravidade da doença no fígado, mas existe o ponto de
não retorno, principalmente em casos de cirrose já muito avançada, já com
água na barriga. Nesses casos, a recuperação do fígado pode não ser
completa e o indivíduo, mesmo parando de beber, pode precisar de
transplante de fígado. Mas nestes casos, parar de beber pode até
viabilizar o transplante, destaca Filho.
O médico explica que, quanto mais tempo sem álcool, mais
tempo existe para o fígado se regenerar e os benefícios serão cada vez maiores:
“Um mês sem álcool é muito benéfico. A pessoa se lembra de
como era a vida sem beber muito e pode optar por continuar sem beber. Quanto
mais cedo conseguir parar de beber, melhor, porque existe o ponto de não
retorno. E mesmo nos casos mais graves há benefício”, diz Filho.
Diretrizes de saúde pelo mundo recomendam vários dias na
semana sem beber. Os franceses exigem pelo menos dois dias sem beber. Os
canadenses estabelecem como ingestão de baixo risco beber apenas duas doses por
semana.
Mesmo doses baixas de álcool aumentam o risco de câncer de
mama, câncer de cavidade oral, de boca e de laringe, por exemplo.
“É claro que o indivíduo que bebe mais apenas nas festas de fim de ano e no carnaval tende a ter menos problemas de saúde do que aquele que bebe o tempo inteiro e mais ainda no fim de ano e no carnaval. Períodos sem álcool são bem-vindos, mas o ideal é a gente não precisar desses períodos, porque isso pressupõe uma fase anterior em que se abusou da bebida”, afirma Filho.
⚠️ Síndrome de abstinência alcoólica
Filho destaca que indivíduos que já têm uma relação de
dependência com álcool, chamada de transtorno por uso de álcool, têm risco de desenvolvimento
da síndrome de abstinência alcoólica, quando decidem parar de beber. Ao parar,
a pessoa se sente mal, em vez de melhor. Ela pode ter palpitações, sudorese,
agitação, irritação, inquietude, convulsões e até mesmo alucinações.
Mas a síndrome de abstinência pode ser evitada ou
precocemente identificada e tratada. Por isso, o ideal é que essas pessoas
procurem a assistência de um médico antes de decidir parar de beber. Dependendo
do caso, esse risco pode ser muito alto e, a síndrome, bastante grave.
Filho explica que um indício de risco de síndrome ocorre
quando a pessoa tenta ficar sem beber e não consegue, precisando consumir cada
vez mais cedo porque se sente mal, inclusive com tremedeira pela manhã, por
exemplo.
Quando o consumo começa a causar dano permanente?
Há quatro graus de fibrose e o risco de fibrose e cirrose
(estágio avançado de fibrose) aumenta com as doses diárias e padronizadas.
Mesmo um drink por dia já se associa ao risco aumentado de cirrose em mulheres.
E grandes quantidades em pouco tempo acrescentam um risco independente. Os
danos permanentes de fibrose e cirrose resultam da exposição crônica e
cumulativa.
Como o álcool afeta o metabolismo do fígado
O álcool, quando consumido em excesso:
- interfere
na enzima AMPK, que ajuda a regular o metabolismo das gorduras. A AMPK
ativa outra proteína, PPARα, que é importante para a queima de ácidos
graxos.
- Como
o álcool inibe a AMPK, ocorre uma menor queima de gordura pelo fígado.
- Causa
danos nas mitocôndrias, que fabricam energia nas células. E isso também
reduz a capacidade do fígado de queimar gorduras.
- Aumenta
a produção de ácidos graxos no fígado e reduz a produção de adiponectina,
um hormônio que ajuda a controlar os níveis de gordura.
- Aumenta
a liberação de ácidos graxos dos depósitos de gordura do corpo.
- Inibe
a secreção de ácidos graxos pelo fígado, o que contribui ainda mais para o
acúmulo de gordura no órgão.
- Afeta
várias vias de sinalização celular, incluindo aquelas associadas à
inflamação e à regulação da autofagia (processo de limpeza celular), o que
contribui para a progressão da esteatose hepática alcoólica, condição
caracterizada pelo acúmulo excessivo de gordura no fígado.
- Pode
causar um desequilíbrio nas bactérias intestinais, o que piora a doença
hepática. Esse desequilíbrio aumenta o metabolismo do etanol no intestino
e causa disfunção intestinal. Bactérias e toxinas podem entrar na
circulação e alcançar o fígado, ativando uma via inflamatória chamada
NFκB. As citocinas pró-inflamatórias liberadas nesse processo contribuem
para a inflamação e fibrose no fígado.
- Favorece
a necrose (morte celular descontrolada) em vez da apoptose (morte celular
programada), o que pode agravar ainda mais a condição hepática.
As lesões hepáticas provocadas pelo álcool
De acordo com o CISA, em indivíduos que fazem uso abusivo do
álcool, as doenças hepáticas mais encontradas são:
1. Esteatose alcoólica (fígado
gorduroso): o
acúmulo de gordura ocorre em quase todos os indivíduos que fazem uso abusivo e
frequente do álcool. A esteatose corresponde ao primeiro estágio da doença
hepática alcoólica. A esteatose também pode ocorrer em indivíduos diabéticos,
obesos, com desnutrição proteica severa e usuários de determinados
medicamentos.
2. Hepatite alcoólica: esta condição implica uma
inflamação e/ou destruição, como necrose, do tecido hepático. Os sintomas
incluem: perda de apetite, náusea, vômito, dor abdominal, febre e em alguns
casos, confusão mental.
3. Cirrose alcoólica: é uma forma avançada de doença
hepática decorrente de um dano progressivo das células hepáticas. O fígado tem
fibrose extensa, o que compromete o funcionamento do órgão, e até de outros
órgãos como cérebro e rins.
4. Hepatocarcinoma (câncer de fígado): o consumo crônico e abusivo de
álcool também está associado a um risco aumentado de desenvolver esse tipo de
câncer de fígado, que pode surgir em um fígado com cirrose ou, em alguns casos,
diretamente devido aos efeitos carcinogênicos do álcool.
23,6 milhões de pessoas com cirrose
De acordo com o Centro de Informações sobre Saúde e Álcool
(CISA), estima-se que 23,6 milhões de pessoas em todo o mundo apresentem
cirrose associada ao álcool, com aproximadamente 10% desses casos
apresentando-se com doença descompensada. Mas a doença hepática alcoólica
muitas vezes não é diagnosticada. Por isso, sua verdadeira carga é
provavelmente subestimada.
Mesmo níveis muito baixos de consumo de álcool aumentam o
risco de mortalidade relacionada à cirrose demonstrou uma meta-análise
publicada em 2010, que reuniu 17 estudos.
Esse risco é acentuado com o aumento do consumo, com homens e
mulheres que consomem mais de 60 g de álcool por dia – o equivalente a três
latas de cerveja, duas taças de vinho ou quatro doses de destilado). Esse
consumo apresenta um risco 14 vezes maior para homens e 22,7 vezes maior para
mulheres, de morte relacionada à cirrose, em comparação com não bebedores.