Aos 13 anos, Marie McReady
acordou um dia sem conseguir emitir som algum pela boca; só aos 25 anos ela
voltou a falar, após descobrir a chocante razão de seu problema; ouça seu
relato em podcast 'Que História!'.
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Marie McCready aos 13 anos — Foto: Arquivo pessoal/BBC |
Marie McCready teve sua vida
virada de cabeça para baixo quando, num belo dia, acordou sem poder falar ou
emitir qualquer som pela boca. Os médicos não conseguiram encontrar uma razão
física que explicasse o problema, e muitas pessoas a sua volta passaram a
desconfiar de que ela estava se recusando a falar.
Desiludida e sem apoio, vista
com desconfiança por parentes, vizinhos e professores, a adolescente chegou a
tentar suicídio e a ser internada em uma clínica psiquiátrica. Mas sua vida
mudou drasticamente quando, finalmente, pôde voltar a falar — após descobrir o
que estava por trás de seu impedimento.
Sua incrível história é
contada no podcast 'Que História!', da BBC News Brasil, apresentado por Thomas
Pappon.
De repente, calada
Marie McCreadie tinha 12 anos
quando sua família se mudou de Londres para Wollongong, ao sul de Sydney,
na Austrália. Tudo ia bem na nova vida no que viam como "um
paraíso", até uma fatídica manhã, cerca de um ano depois.
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Marie McReady perdeu a voz aos 13 anos sem que os médicos conseguissem explicar a razão — Foto: Arquivo pessoal/BBC |
"Acordei com uma forte
dor de garganta e um forte resfriado", contou Marie ao programa Outlook,
da BBC. . "Dias depois, virou uma bronquite. Passei uma semana bem mal,
com febre. Depois fui melhorando, a infecção no peito foi embora, a febre também.
Mas quando estava boa de novo, seis semana depois, minha voz tinha
sumido."
"Eu não sabia o que
fazer. Quando dava risada, ou quando tentava sussurrar, mesmo quando tossia,
não saía som algum."
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Muitas pessoas em volta de Marie não acreditavam que ela não pudesse falar — Foto: Getty Images/BBC |
O diagnóstico inicial do
médico foi de laringite. Depois, foi de mutismo histérico, uma doença
mencionada pela primeira vez no final do século 19, caracterizada por um
silêncio obstinado ligado a uma ansiedade extrema ou a um evento traumático.
Em outras palavras, o médico
achava que Marie podia falar, se quisesse.
Mas Marie, então com 13 anos,
não estava se recusando a falar. Mesmo porque estava tendo vários problemas por
causa disso.
"Eu não podia usar o
telefone, não podia marcar dentista, médico, cabeleireiro...E se eu tivesse um
acidente? Teve uma vez em que fui acampar com amigos, eu estava numa trilha
sozinha, escorreguei e cai num barranco, de uns três metros. Fiquei presa lá
embaixo, sem conseguir sair, e não tive como chamar ajuda, achei que fosse
ficar presa ali a noite inteira... Tive de ser bem mais cuidadosa."
Na escola católica, dirigida
por freiras, também não foi fácil lidar com essa situação.
"Havia uma freira que
dirigia um coral, e ela dizia que todos os alunos deveriam participar desse
coral e me incluiu. Tive de aprender a letra de Ave Maria em latim, eu formava
as palavras com a boca, sem emitir som algum, fazendo de conta que estava
cantando, era constrangedor."
"Meus amigos acharam
divertido no começo. Mas com o passar dos dias, começa a encher o saco. Eu
conversava usando gestos e mímica. Alguns amigos conseguiam ler meus lábios. Eu
andava sempre com pequenos blocos de notas e uma caneta, para me comunicar
escrevendo. Mas era difícil participar de uma conversa assim. Muitas vezes não
funcionava. Tente contar uma piada escrevendo ela num bloco!"
"Era muito frustrante.
Quando discutia com alguém, não conseguia passar meu ponto de vista. A pessoa
simplesmente virava as costas e ia embora. O que eu queria era gritar na cara
dela, mas não podia. Tinha que absorver essa frustração. Eu tinha muita raiva
dentro de mim."
"Uma vez eu estava num
baile. Um rapaz dançou comigo algumas vezes e eu queria conversar com ele, mas
não conseguia. Eu ficava sorrindo, e por mais que tentasse dizer o que eu
queria, não havia como. Eu ficava com raiva, com raiva de mim mesma. 'Ô menina
estúpida', eu pensava. E quando voltava pra casa, eu deitava no chão e ficava
chorando. Eu queria falar, mas não sabia como."
'Uma bruxa'
Sob forte pressão, sem
conseguir falar, Marie começou a duvidar de si mesma.
"No mundo em que cresci,
pessoas como padres, freiras, médicos sempre estavam certos! Você não
questionava o que eles diziam. No começo, quando me chamavam de 'mulher dos
infernos', era engraçado, mas depois de um tempo, ficou pesado. Quando me
neguei a confessar, me proibiram de participar da missa que havia na escola
toda sexta-feira. Tinha de esperar do lado de fora. Até pensei, 'que bom! não tenho
que participar dessa coisa chata'. Mas foi uma separação. Estava sendo separada
de minhas amigas. Comecei a acreditar neles, que eu era uma pessoa má, que
pertencia ao diabo, uma pessoa abandonada por Cristo, uma bruxa."
Vizinhos e amigos da família
suspeitavam de Marie, achando que ela não falava por não querer ou por algum
problema mental. Chegaram a sugerir que ela fosse internada.
Isolada, frustrada e cheia de
dúvidas, Marie, aos 14 anos, chegou a tentar suicídio. Ela foi parar no
hospital. Mas quando se recuperou, em vez de ser levada pra casa, foi internada
numa clínica psiquiátrica.
"Foi um inferno. Minha
ala era de mulheres dependentes de drogas ou vítimas de colapso nervoso ou de
abuso. Era uma cama ao lado da outra, separadas apenas por cortinas. Eram todas
adultas, eu era a mais nova, aquilo era um pesadelo pra mim. Você tinha que
pedir papel higiênico para ir ao banheiro. O banheiro não tinha portas."
"Vi pacientes voltando de
sessões de terapia de choque elétrico. Tinha ouvido os gritos. Fiz uma sessão,
é muito cruel. Você é levado a uma sala que parece uma câmara de torturas. Você
tá morrendo de medo e ninguém explica nada. Pelo que pesquisei depois, vi que
essa terapia nunca fez bem a ninguém, e que o excesso de choques poderia causar
sérios danos cerebrais."
"E eu não conseguia me
comunicar porque não podia ter papel e caneta, por razões de segurança. Só as
enfermeiras andavam com papel e caneta. Uma vez uma enfermeira me disse 'Você
não precisa de papel nem caneta, é só você falar'. Minha cabeça estava
explodindo de tanta raiva e frustração. E achava que fosse passar o resto da
vida nessa clínica."
A essa altura, Marie tinha
perdido toda a confiança nos pais, que a tinham colocado ali. Desesperada, ela
só via uma saída: fugir.
"Havia visitas nas noites
de sábado. E teve uma noite em que eu pensei 'vou embora, eles não vão me tocar
de novo'. A gente usava roupa comum, e quando vi uma família saindo eu
simplesmente me juntei a eles. Eu sabia que não podia voltar pra casa dos meus
pais, eles me mandariam de volta à clínica. Então fiz uma longa caminhada, de
18 quilômetros, até a casa de uma amiga."
Mas, sem muitas opções, Marie
acabou voltando pra casa dos pais. No entanto, desconfiada de todos a sua
volta, ela passou a se isolar do mundo.
"Quando voltei pra casa,
não confiava em ninguém. Não queria ver ninguém. Toda confiança que eu tinha
nas pessoas sumiu quando estive na clínica. Eu ficava deitada no meu quarto,
ouvindo rádio. Não queria estar perto de ninguém. Achava que as pessoas só
queriam me maltratar."
A descoberta
Marie passou seis meses
isolada do mundo. Mas aos poucos ela se conformou com a ideia de que sua voz
não voltaria. E começou a criar uma nova vida para ela. O primeiro passo foi
começar a trabalhar, na cafeteria de sua mãe. Ela aprendeu a linguagem dos
sinais. E retomou os estudos, concluindo um curso para se tornar datilógrafa.
Ela não falava, não sabia por que, mas pelo menos podia levar uma vida adulta
razoavelmente normal.
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Marie engoliu uma moeda como essa acima, de 16 mm de diâmetro — Foto: Reprodução/BBC |
Mas uma grande surpresa — e
mudança na vida — ainda estava por vir. Quando estava com 25 anos de idade, um
belo dia, no trabalho, ela começou a passar mal.
"Eu não estava bem.
Comecei a tossir. Fui ao banheiro e comecei a cuspir sangue. Fiquei apavorada.
Achei que estava morrendo. Parecia que tinha alguma coisa se mexendo no fundo
da garganta. Achei que estivesse cuspindo pedaços de mim. A telefonista chamou
uma ambulância e fui levada a um hospital. Ali, detectaram um caroço na minha
garganta."
"Me deram anestesia e
retiraram esse caroço. Quando limparam ele, viram que era uma moeda, de 3
centavos de dólar australiano. Uma moeda que saiu de circulação em meados dos
anos 1960. Não faço ideia de como ela chegou ali. Foi um choque. Foi diferente
do choque da primeira vez, quando não pude falar. Dessa vez foi, 'Não, peraí,
não é possível!'"
A hipótese mais provável é de
que ela engoliu a pequena moeda, de 16 mm de diâmetro, sem querer. Pode ter
sido uma moeda da sorte colocada num bolo de Natal, como é tradição em alguns
países. Ou uma moeda perdida em uma lata ou garrafa de bebida. O fato é que
essa moeda ficou presa entre as cordas vocais de Marie por 12 anos. Isso
impedia que elas vibrassem ou produzissem qualquer som.
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Marie lançou o livro 'Voiceless', relatando sua experiência, em julho de 2019 — Foto: Cortesia Marie McCreadie/BBC |
"Na época, eles fizeram
exames de sangue e raio-X. Mas o raio-X foi mais embaixo, mais da região do
peito do que da garganta. E mesmo se tivessem feito o raio-X do lugar certo,
não teriam visto a moeda, escondida atrás de um osso."
E assim, sem a moeda na
garganta, o mundo de Marie McCready mais uma vez começou a mudar.
"Eu pude sentir o som na
minha garganta. Foi um gemido. Primeiro achei que alguém estivesse fazendo uma
brincadeira. Mas depois comecei a chorar, e o meu soluço do choro era um som
totalmente novo pra mim. Depois de tanto tempo... Fiquei histérica. O médico
teve que me dar um calmante."
Marie tinha agora pela frente
um novo desafio: o de voltar a aprender a falar.
"Eu não tinha a técnica
de respirar, o que parece uma bobagem, mas não é. Quando você é um bebê e
aprende a falar, também está aprendendo a respirar. Você tá aprendendo a usar o
diafragma para controlar o volume da fala. Quando voltei a falar, era um
esforço tão grande que eu ficava tonta, quase desmaiava. Porque não estava
falando direito. O som estava saindo, mas não havia ar suficiente nas palavras
para ter volume. Tive de fazer terapia de fala, por umas quatro semanas. Foi aí
que as técnicas de mímica, de fazer de conta que estava falando, como quando eu
participava do coral, me ajudaram. Aquela freira, indiretamente, me ajudou a
voltar a falar."
Seu primeiro telefonema foi
para sua mãe. "Ela começou a chorar. 'Eu te disse que tua voz voltaria um
dia! Eu te disse!' ela dizia."
Marie também teve de lidar com
vícios dos tempos em que era muda e que causaram alguns constrangimentos.
"Quando as pessoas faziam
coisas que me irritavam, eu xingava ou respondia. Mas como não saía som, não
tinha problema. Mas agora as pessoas estavam ouvindo o que eu dizia. Tive de me
monitorar. Além disso, quando eu costumava a escrever comentários em blocos de
notas, eles tinham de ser curtos, porque você está conversando com pessoas e as
pessoas não gostam de ficar esperando. Então eu era concisa. Quando você
vocaliza essas mensagens, elas parecem bem abruptas, pode parecer
grosseria."
"Foi uma montanha russa
de emoções. Eu estava feliz e animada. Queria ler em voz alta, cantar em um
coral, conversar com todas as pessoas ...Mas tinha momentos em que me batiam as
memórias da escola, da clínica, e em que penso que nada disso teria acontecido
se tivessem achado a moeda antes."
Marie McReadie guardou a moeda
e a colocou em uma pulseira, que usa de vez em quando. Suas memórias ela
registrou em um livro, Voiceless ('Sem Voz'), lançado em 2019.
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