Como vivia a mulher que passou 38 anos sob condição análoga à escravidão

Madalena Gordiano, 47, que viveu em Minas Gerais sob regime análogo à escravidão por 38 anos, rezava todos os dias porque acreditava que "Deus a ajudaria a ter uma vida nova", contaram ao UOL pessoas próximas a ela. Foi assim que encontrou forças para sobreviver aos 38 anos em que esteve sob custódia da família Milagres Rigueira, primeiro nas cidades de São Miguel do Anta e Viçosa, por 24 anos, e depois em Patos de Minas, onde morou os últimos 14 anos.

A história foi revelada no último domingo (20) pelo programa "Fantástico", da TV Globo. A reportagem do UOL entrevistou pelo menos 20 pessoas para descrever o cotidiano de Madalena.

Em liberdade desde o fim de novembro, Madalena foi retirada da casa do professor universitário Dalton César Milagres Rigueira após denúncias de vizinhos ao MPT (Ministério Público do Trabalho). Durante todo o tempo em que prestou serviços à família, Madalena sofreu abusos e abandono em uma rotina de total precariedade, aponta o inquérito em andamento.

O advogado Brian Epstein, que representa a família Rigueira, afirmou que ainda não teve acesso aos autos do processo. O defensor criticou também que o processo tenha sido divulgado sem que haja uma sentença condenatória. "A defesa seguirá, discreta e séria, atuando exclusivamente nos limites constitucionais e do Devido Processo Legal. Estamos em um momento de confraternização cristã e uma reflexão cautelosa, após conhecimento de todos os fatos nunca criará prejuízos", lê-se na nota divulgada pelo advogado.

Dalton Rigueira foi afastado de suas funções da Fepam (Fundação Educacional de Patos de Minas), entidade mantenedora do Unipam (Centro Universitário de Patos de Minas). Nos depoimentos obtidos pela TV Globo, Dalton alegou que Madalena "não era considerada como empregada da família".

 

Madalena Gordiano encontrou na religião um refúgio de um cotidiano de privações

Exploração começou aos 8 anos

De acordo com a denúncia enviada ao MPT, Madalena passou a morar aos oito anos de idade com Maria das Graças Milagres Rigueira, conhecida como Dona Gracinha. A mãe biológica de Madalena não tinha condições de criar 16 filhos.

Apesar de ser professora e de sua família ter escola na cidade, com boas condições financeiras, Gracinha retirou Madalena dos estudos para que ela se dedicasse exclusivamente aos trabalhos domésticos. Aos 12 anos de idade, ela mudou-se para Viçosa para seguir prestando serviços aos Rigueira.

Esta fase da vida de Madalena durou até 2006, quando Dalton, filho de Gracinha, foi chamado para ser professor de zootécnica e veterinária do Unipam.

Por conta de uma divergência familiar e exigência de Vanir Rigueira, marido de Gracinha, Madalena passou a morar com Dalton anos antes de se mudar para Patos de Minas, na região do Alto Paranaíba, próximo ao Triângulo Mineiro.

Na nova cidade, encontrou na Igreja Católica um local seguro onde pôde fazer algumas amizades. Apesar de sempre ter sido religiosa, Madalena não era de ir a missas com frequência até então.

O medo afligia Madalena a todo momento, apurou a reportagem. Madalena tinha um comportamento diferente com os moradores do prédio em que habitava. Sempre receosa de consequências que poderia sofrer do então novo patrão e, principalmente, de sua esposa Valdirene Lopes Rigueira, ela evitava ter conversas com vizinhos. Limitava-se a cumprimentar com um sorriso no rosto e um breve comentário.

"Ela tinha muito medo de falar com a gente. Quando percebia que alguém da família estava chegando, ela já virava as costas e saía para não ter problema", disse ao UOL uma pessoa que morava no prédio e pediu anonimato.

Já na igreja, onde se sentia protegida e distante dos patrões, Madalena era vista como uma pessoa alegre e de bom trato. "Ela dizia que tinha trabalhado demais, que estava com dores nas costas. E sempre reclamava da Valdirene. Dizia que ela gritava muito com a mãe, que a maltratava", relatou uma fonte à reportagem.

A mãe de Valdirene é Elvira Lopes da Costa, peça importante no contexto familiar. Aos 27 anos de idade, Madalena se casou com Marino Lopes da Costa, de 78 anos e irmão de Elvira, apesar de jamais ter tido relação com o marido. O registro matrimonial ocorreu no cartório na zona rural de Cajuri, cidade próxima a Viçosa e que tinha trâmites menos burocráticos.

Dois anos depois, Marino, ex-combatente de guerra, morreu. Madalena não foi em seu velório, mas passou a receber uma pensão que hoje ultrapassa R$ 8 mil.

Em 2006, quando mudou para Patos de Minas, Madalena dividia com Elvira as obrigações de cuidar das filhas de Dalton e Valdirene. Porém, com o passar do tempo, Elvira começou a sofrer com a saúde debilitada pelas consequências do Alzheimer. Morreu em 2019, aos 84 anos de idade. Há relatos de que Elvira também vivia em situação de abandono no apartamento dos Milagres Rigueira.

Sem plano de saúde

Sem plano de saúde, Madalena buscava ajuda com pessoas da igreja ou em um posto que ficava a dois quilômetros de distância de onde morava.

"Uma vez a Madalena me disse que estava gripada há duas semanas e eu perguntei se ela estava tomando remédios. Ela disse que não. Então eu comprei um remédio e pastilhas e dei para ela, mas ela não queria aceitar porque poderia ter problemas em casa. Mesmo assim eu insisti e ela aceitou. Mas pegou o remédio, tirou os comprimidos e escondeu na roupa para que ninguém em casa descobrisse", contou um dos confidentes da igreja.

Madalena também tinha problemas dentários e ficou anos sem dentes. Quando conversava, falava com a mão na boca. Coube às pessoas da igreja buscar um tratamento em uma faculdade da cidade que prestava serviços sociais, e assim ela conseguiu obter uma dentadura.

Desejo reprimido

Em seus poucos momentos livres e sem obrigações domésticas, Madalena gostava de andar pelo centro comercial da cidade e visitava lojas que estavam a dois quarteirões de distância de onde morava. As preferências eram sempre por roupa feminina e brinquedo infantil, dois de seus desejos que nunca foram saciados. Ela apenas observava, jamais comprava.

Madalena era conhecida das comerciantes. Apesar de nunca ter adquirido nada, ela gostava de observar as roupas.

Madalena gostava de visitar lojas de roupas, mas nunca tinha dinheiro para comprar as peças

"Um dia ela falou que queria muito comprar uma roupa e que poderia até comprar, mas que 'eles' (no caso a família Milagres Rigueira) tomavam todo o dinheiro dela", contou um comerciante.

Entre os lojistas, Madalena também se queixava da alimentação que recebia. Era sempre obrigada a fazer suas refeições sozinha em seu quarto de, no máximo, seis metros quadrados, sem janela e sem ventilação, embora o apartamento fosse de quatro quartos, dois deles vagos após as filhas do casal saírem de casa nos últimos anos.

Embora a própria tivesse uma renda superior a R$ 8 mil oriunda da pensão do casamento com o tio de Valdirene, Madalena estava sempre sem dinheiro. O cartão ficava sob posse de Dalton, que fazia uso total do valor recebido. Nos depoimentos ao MPT, o professor disse que repassava o valor integral a Madalena, enquanto ela relatou que recebia entre R$ 50 e R$ 200.

A falta de recursos pôde ser comprovada no dia em que foi resgatada pela Polícia Federal e por auditores fiscais do trabalho e MPT na casa dos Milagres Rigueira. Sem acesso à televisão e telefone celular, Madalena não tinha nenhum bem pessoal. Com pouco mais de três camisetas — todas masculinas e que eram doações de outras pessoas -, os pertences foram levados em um simples lençol.

O processo do caso Madalena está na fase de inquérito no MPT. Enquanto isso, Madalena está em Uberaba em um abrigo, com atendimento social e psicológico neste recomeço de vida. Já Dalton e Valdirene saíram de Patos de Minas na última semana com medo de linchamento público.

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